A crise humanitária global se agrava devido a conflitos armados, a regimes autoritários que perseguem e ameaçam pessoas, e a novos problemas – como os deslocamentos provocados pelo aquecimento global. Isso quem diz é o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, a agência da ONU que atua em defesa das pessoas refugiadas. São cerca de 70 milhões de pessoas que foram obrigadas a se deslocar em razão de alguma perseguição (Relatório Tendências Globais, 2019). Além dessas causas geradoras de refúgio, aumentam cada vez mais as restrições, muitas delas ilegais, impostas por governos de direita e ultradireita à entrada e permanência de imigrantes.
Como o Brasil se posiciona em relação a esse cenário humanitário?
Desde a redemocratização, em meados dos anos de 1980, o Brasil vem assumindo posições em prol dos Direitos Humanos e a Constituição de 1988 tornou-se um marco nesse sentido. Em relação aos refugiados, o Brasil é parte da Convenção de Genebra de 1951 e do Protocolo de 1967 – principais documentos internacionais sobre o tema do refugio – tem uma lei considerada muito boa sobre o tema – a Lei 9.474/1997 – e tem tido posições diplomáticas progressistas inovadoras na região latino-americana – pelo menos até bem pouco tempo. O país também assumiu o compromisso em implementar o Pacto Global sobre Refugiados, um documento político transcendente aprovado pela Assembleia Geral da ONU, em dezembro de 2018.
Entretanto, apesar dos elogios de autoridades internacionais à lei brasileira de refúgio e aos seus avanços normativos, há uma série de problemas acumulados a que se somam novos, os quais colocam grandes desafios para a questão do refúgio no Brasil.
Para entender melhor a natureza desses problemas é essencial saber que há dois grandes compromissos que todos os países – inclusive o Brasil – assumem no tema humanitário com respeito às pessoas refugiadas.
O primeiro compromisso é a proteção dessas pessoas, que inclui uma série de medidas protetivas que vão desde garantir (muito além de permitir) a entrada no país (mesmo sem documentos), a residência provisória, o direito a solicitar refúgio, até o recebimento de documentos de identidade, como Registro Nacional de Estrangeiro (RNE), CPF e Carteira de Trabalho. Nesse quesito a lei brasileira é boa. O problema maior é que o órgão federal encarregado de avaliar e decidir as solicitações de refúgio – o Conselho Nacional para os Refugiados – CONARE, vinculado ao Ministério da Justiça, é insuficiente em termos de pessoal e recursos para atender minimamente a demanda. Isso gera muita demora – cada caso pode durar mais de dois anos para ter uma resposta – e falhas nos processos que prejudicam as pessoas solicitantes de refúgio.
O segundo compromisso é a integração dessas pessoas. Muitas delas não podem retornar aos seus países de origem tão cedo, algumas nunca mais retornarão (devido as condições de perseguição e de guerra civil no pais de origem). Por isso é fundamental que essas pessoas refugiadas, e suas famílias, sejam acolhidas e exerçam seus direitos em igualdade de condições com os nacionais do país.
Há muitos depoimentos de pessoas refugiadas que elogiam o Brasil por ser um pais acolhedor e ter um povo solícito. Da mesma forma, há outros que denunciam racismo, discriminação e xenofobia – algo que vem aumentando e preocupando muito aos que atuam com direitos humanos no país. O grande problema aparece aqui: o Estado brasileiro pouco promove a integração. Os estados e municípios, que não tem competência para atuar na questão migratória, tem que receber os migrantes nas escolas, nos postos de saúde e propiciar políticas públicas, mas não estão preparados para isso, nem recebem recursos federais para atender essas demandas.
Essa dificuldade do estado brasileiro é estrutural, e por isso o papel da sociedade civil tem sido tão importante. Organizações não governamentais, como a Caritas, o IMDH e o ADUS, atendem refugiados e prestam uma série de serviços que são determinantes para a integração dessas pessoas, seja para aprender o português, seja para obter um trabalho, seja para orientar sobre os direitos no país. O mesmo se dá com universidades que adotam políticas de ingresso e permanência de refugiados e outros serviços para auxiliar sua integração (a exemplo da Cátedra Sergio Vieira de Mello). Mas a maioria dessas organizações não recebe recursos do governo ou do ACNUR – ou se recebem, são muito escassos. Daí a importância das parcerias com empresas.
Até pouco tempo, essas questões eram de interesse apenas para especialistas, agentes de governo e trabalhadores humanitários. A crise do Haiti, em 2010, e o conflito na Síria, em 2011, trouxeram muitas pessoas daqueles países para o Brasil visibilizando o tema. Mas a questão do refúgio ganhou mais destaque com a crise da Venezuela, a partir de 2016, e o fluxo de migrantes na fronteira com o Brasil. Chegamos ao ponto em que a Rede Globo produziu uma novela para abordar o assunto (Órfãos da Terra), o que evidencia um grau elevado de importância do tema para a sociedade brasileira.
Cabe refletir que, pelas suas dimensões e compromissos assumidos, o Brasil deveria avançar mais e rapidamente, melhorando a proteção às pessoas refugiadas e incrementando as políticas de integração. A crise da Venezuela é o grande desafio nesse momento e possivelmente continuará por um bom tempo. Nenhum retrocesso nesse campo poderia ou deveria ocorrer, muito menos por parte do governo federal ou do poder legislativo – como se tem visto recentemente. E a sociedade civil brasileira pode atuar muito mais, tanto como defensora dos direitos conquistados, como colaboradora ativa para a integração dos refugiados no país.
Gilberto M. A. Rodrigues é Professor Visitante Sênior (Capes-Print) na Universidade de Duisburg-Essen, Alemanha. É Professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais e membro da Cátedra Sergio Vieira de Mello da Universidade Federal do ABC (UFABC). Autor do livro Refugiados – o grande desafio humanitário (Moderna, 2019) e membro do Conselho Consultivo do ADUS.