Sociedade Civil atua contra retrocessos às Leis de Migração e Refúgio no Congresso

Paola Gersztein*

Vinte anos após a promulgação da lei que reconhece o estatuto da pessoa refugiada, o Brasil consolidou a garantia de que todas as pessoas que se encontram em seu território são sujeitos de direitos. O Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980), ainda seguia em vigor até maio de 2017, quando seu ultrapassado modelo de segurança nacional foi finalmente substituído pela Lei de Migração. A Lei 13.445/2017 foi a culminação de um processo que envolveu diversos setores da sociedade brasileira, inclusive aqueles que são seus destinatários diretos: as pessoas migrantes.

Dois anos após sua promulgação – apesar dos diversos vetos que lhe foram impostos pelo então presidente Michel Temer – a permanência dos preceitos da Lei de Migração sofreu, até o momento, sua mais dura prova. Em 10 de julho de 2019, durante sessão da Comissão de Assuntos Sociais do Senado, ao Projeto de Lei 1928/2019, que originalmente apresentava a singela e salutar proposta de criação de visto temporário para intercambistas e estagiários, foi apresentada uma emenda que, por seu conteúdo, é conhecida no meio do advocacy como “jabuti”.A expressão refere-se à alteração substancial de algum projeto de lei com a desvirtuação da proposta inicial.

O jabuti em questão – Emenda n° 1 ao PL 1928/2019 – pretendeu instituir graves retrocessos não só à Lei de Migração, como também à Lei 9.47419/97 e até mesmo à Convenção de 1951 sobre o Estatuto do Refugiado, o que já seria suficiente a demonstrar seu desproposito. As proposições do mencionado Projeto de Lei incluíam: prisão para deportação ou expulsão; recusa de ingresso no país ou de reconhecimento da condição de refugiado  diante da mera suspeita de cometimento de crimes; retirada compulsória de solicitantes de refúgio do país; autorização do prosseguimento dos pedidos de extradição nos casos de solicitação de reconhecimento da condição de refugiado ainda pendentes; dentre outros retrocessos. A proposta violava de forma patente os princípios da presunção de inocência, devido processo legal, igualdade entre nacionais e não nacionais, estrita legalidade em matéria penal, bem como o princípio basilar do Direito Internacional das Pessoas Refugiadas, conhecido como non refoulement , que consiste na não devolução de pessoa solicitante de proteção internacional a  qualquer país onde sua vida e integridade estejam em risco. Além da afronta aos princípios mencionados, o PL 1928/2019 alterava até mesmo a Convenção de 1951 sobre o Estatuto do Refugiado, ao pretender ampliar as hipóteses nas quais uma pessoa não pode ser reconhecida como refugiada no país.

Proposto o “jabuti”, integralmente incorporado ao texto do Projeto de Lei por seu relator, Senador Luiz do Carmo (MDB/GO), o Senador Paulo Paim (PT/RS) apresentou pedido de vista, fato que impediu sua votação – e eventual aprovação – pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado. Quinze dias depois, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, publicou a Portaria 666, cujas disposições coincidiam quase integralmente com o texto da Emenda n° 1 ao referido PL. É relevante mencionar que ao apresentar o “jabuti” na sessão do dia 10 de julho, o Senador Fernando Bezerra Coelho (MDB/PE), líder do governo no Senado, afirmou que a Emenda n° 1 representava um pedido do Ministro Moro.

Claro era o interesse do governo em fazer com que o modelo da Lei de Migração, calcado nos direitos humanos, retrocedesse ao paradigma da segurança nacional. Diante do pedido de vista que tornaria o trâmite legislativo mais lento, o Ministro da Justiça e Segurança Pública utilizou-se de uma portaria para tentar instituir as mesmas medidas.

As alterações propostas à Lei de Migração mobilizaram não só a sociedade civil, que protagonizou duas audiências públicas no Senado Federal, mas também a Defensoria Pública da União (DPU) e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que manifestaram sua preocupação com os possíveis retrocessos Por sua vez, o Ministério Público Federal, representado pela então Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, propôs Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) contra a Portaria 666.

Em 1º de outubro, passados menos de três meses da apresentação do “jabuti”, o Senador Acir Gurgacz (PDT/RO), autor da proposta inicial, retirou-a de tramitação.

Dez dias depois, a Portaria 666 foi substituída pela Portaria 770, cujas disposições tampouco respeitam as normas nacionais e internacionais relativas à proteção das pessoas migrantes, solicitantes de refúgio e refugiadas.

Como preceituava Hannah Arendt, a igualdade em dignidade e direitos não é um dado, mas um construído da convivência coletiva que requer o acesso a um espaço público comum. Esse espaço público foi devidamente ocupado pelas pessoas e instituições engajadas na defesa e no reconhecimento da dignidade fundamental que nos iguala como seres humanos, independentemente da origem, situação migratória ou mesmo da concessão de uma nacionalidade.

*Paola Gersztein é mestra em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membra da Red Latinoamericana sobre Derecho e Integración de las Personas Refugiadas (RALDIR).